Nada de bom

Daniel Fonseca Yarochewsky
4 min readApr 13, 2020
bane from batman

Quem citar Churchill primeiro perde o debate, então aqui ofereço o óbito dos meus argumentos para a reputada trupe teatral que circula por aí, impecavelmente coreografada, lançando defuntos para o alto: nunca desperdice uma boa crise. Peço aos angolanos que empenhem suas forças, pois quero um verdadeiro thruster meio Hava Naguila, e a julgar pelas semanas em casa com os meus gloriosos 457 passos/dia registrados no celular, a probabilidade de decepcionarem o defunto não é desprezível.

Pois bem! Já dei orgulho ao Inglês; não desperdicei a oportunidade da brincadeira, mas agora vamos ao sério, ou ao menos lúdico. Nada de bom ocorreu no confinamento. Nada. Ou isso, ou como diz um amigo meu: “Marcos não entendeu nada do que se passou na telona. Seu entendimento dissolveu no ar. Foi translúcido, como o de um papel engordurado de coxinha no centro da cidade”. Mas então para que escrever sobre? Ah! Porque os perdedores adoram ter uma estória para contar. Aqui vão-se as minhas então, dedicadas ao intelectual consumidor de lives sertanejas e comedor de bolos de cenoura.

Confesso que me presto um desafio aqui. Concorrer audiência com os que degustam os ralhos emotivos de Mandetta, Trump, e Dr. Fauci nas tardes modorrentas não parece fácil. Mas também vale fazer justiça e me requalificar aos andares dos desafios de trinta dias no Instagram, das fotos throwback de gente abraçada em bar, e dos vídeos de gente fazendo Crossfit na sala de jantar. Assim, pois, um divertimento caseiro e amador, nada comparado à sofisticação de uma celebridade política dando esporro na população em horário nobre de televisão.

Às estórias.

Livre de vergonha, admito: terminei meu primeiro livro do ano, depois de seis ou sete meses sem ter paciência ou ímpeto de ler aquelas mais oitenta páginas que faltavam. Fechei a contra-capa e falei “muito bom”. Ninguém escutou.

Fui à cozinha logo na primeira semana e joguei a carne na frigideira, pus a mesa lá fora, na varanda — guardanapo de pano, taça, salada. Quando sento, a carne é crua. Jacquin ia falar que posso ser processado com isso aqui. Lá pelo terceiro, quarto dia, deu certo: a carne, o peixe, o arroz, a guacamole, a quinoa. Tá bom, chega.

Fui procurar no Google como fazer a cedilha no Macbook, depois de quase um ano sem escrever em português. Gastei 2 minutos do meu valioso tempo de quarentena trocando o teclado virtual do computador, olhando na Internet, seguindo o arranjo do polegar, indicador e médio juntos, e saiu o c com “perninha” — ç. Ocupa duas linhas quando grafado em papel e 2 minutos no computador. Tivesse em Nova York dava um tapão no computador, colocava um casaco e ia fazer sei lá o que na rua. “Caros minutos, da próxima vez cobrem-me menos por uma cedilha — time is money”.

No primeiro final de semana, sentei-me ao computador, e o impossível começava a acontecer. Não divaguei como sempre faço, abrindo os jornais, os blogs de tecnologia, o YouTube com as palestras técnicas, que acaba em clipes de música. Nada. Fui direto pra tela preta e comecei um projeto com a mesma vontade que tinha há dois anos, no meio da faculdade. Nem sei o que vai dar, então me calo, mas finalmente recuperei minha criatividade — o trabalho a consome, e aprisiona as (boas) ideias que eu tenho.

Há várias semanas atrás, quando fugi de Gotham e cheguei ao exílio, fiz o drama a quem perguntasse: “não conhecerei o homem que sairá do outro lado”. Isso dá uma rasteira em qualquer um mesmo, a vida parece aquela série Boneca Russa (quem não viu, larga a live de “sofrência”, pega o bolo de cenoura e vai) — repete, repete, e repete.

Mas fato é, sem nada de bom acontecendo na semana, sem happy hour, sobra mais tempo para as horas ruins. Leitura, cozinha, projetos, uma cedilha-zinha. Deixei a barba crescer — faz parte da projeção do homem diferente que sai do outro lado. Me fascinou um pouco como me adaptei, não imaginava como aguentaria tantos dias sem quase nenhum contato social. Eu que introvertido mas sociável, não aguentava mais de um domingo mais lento, com brunch e caminhada serena, para pular da cama na segunda com vontade de ser o primeiro a chegar no escritório e jogar conversa fora no almoço. Nada de bom acontece em confinamento. Claro que não. A economia para, as cidades se apagam, os negócios quebram, as pessoas não se veem.

Daqui a pouco a gente vai voltar às ruas, e vou voltar a Nova York julgando que fiz alguma coisa de bom pra mim mesmo nesse tempo, que tenho algo a mais que já não tinha quando saí. E se proíbe-se um Inglês, então cita-se um Grego: ninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes. Viu como eu tinha razão sobre não saber do homem que sairia do outro lado?

Quando sair então vou insistir para essa pessoa que nada de bom aconteceu. Assim tento continuar engatado, e me trapaceio no impossível equilíbrio das tentações da vida social, atlética, consumista e frenética de Manhattan com as ambições do barbudo, pensativo, cafeinado, e inquieto da quarentena. Paciência. Coisa que sempre tanto me faltou, e que se faz ainda mais valiosa em meio à vida fervente que tanto oferece a todo tempo, mas que cobra, justa ou injustamente, todavia com preciso cálculo, as incontáveis cedilhas de quem a leva sem se preocupar com o que dela quer. Falando em decepcionar defuntos, Nietzsche então…

É isso! O melhor conselho que me dou agora. Talvez não o Übermensch — sempre preferi o Batman. Quando voltar, com um adendo ao original, ser o herói que Gotham precisa, para um dia ser o que ela merece. Sem isso, nada de bom vai ter acontecido, e aí sim, terei desperdiçado uma bela crise.

Primavera? de 2020.

Dedico ao meu pai que me incentivou a voltar a escrever.

--

--